sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Zumbi final

∑ Ao longo da vida um homem muda de corpo muitas vezes. Estamos sempre a mudar de corpo. Crescemos, engordamos, algumas vezes encolhemos, o cabelo embranquece, perde o vigor e cai. Muita gente acredita que antes de morrermos vemos o filme da nossa própria vida, desenrolando-se vertiginosamente, desde que nascemos até aquele último instante. Se assim fosse o que veriamos seria um ser em permanente mutação, ou seja, alguém com infinitos corpos.
∑ Acho-o bom como um rio. (…) Quero dizer, é uma daquelas pessoas raras, sinceras, que por onde passam deixam tudo mais alegre e exuberante.
∑ A pior das desgraças é trabalhar por necessidade.
∑ Viver é lembrar. Lembrar é sofrer.
∑ Tu sabe, maluco, o homem nasceu lá em África. No princípio só tinha pretos no mundo. Depois alguma coisa deu errado e apareceram os brancos, raça degenerada, de cabelo fraco, com uma pele tão frágil que mal suporta o sol.
∑ Gostaria de se despir do corpo, deixá-lo estendido na cama, vazio e inútil, reaparecendo à sociedade com uma nova pele, um rosto inédito, inteiramente desconhecido. No dia seguinte de manhã, uma das empregadas encontraria a sua pele, uma sombra leve, sedosa, desenhada contra o firme esplendor dos lençóis. Como reagiria? Talvez não estranhasse. Quem sabe, limitar-se-ia a jogar fora o estorvo estranho.
∑ Existe beleza em todas as coisas. O que nem sempre existe são olhos capazes de a ver.
∑ Tudo o que sei aprendi nos livros. Durante muitos anos nem vivia, lia. Sou uma pessoa construída na literatura.
∑ Intuição. Curiosa palavra. Vem do latim tardio, com o significado de imagem reflectida por um espelho.
∑ No céu luminoso correm agora densas nuvens negras. A maioria das pessoas olharia com desgosto para as nuvens. O jornalista, contudo, sorri. Impressiona-o a beleza daquele instante. O prodígio de milhões de partículas de água suspensas na atmosfera. Um rio que desliza, escuro, sobre a cidade.
∑ Os pessimista já se suicidaram todos.
∑ pessimismo é um luxo dos povos felizes.
∑ Regressamos sempre aos velhos lugares aonde amámos a vida. E só então compreendemos que não voltaram jamais as coisas que nos foram queridas. O amor é simples, e o tempo devora as coisas simples.
∑ A tristeza é a morte lenta das coisas mais simples.
∑ Resignação é uma espécie de submissão paciente aos sofrimentos da vida.
∑ Amamos sobretudo aquilo que não conhecemos, não achas?
∑ que me atrai numa mulher não são as suas virtudes visíveis, são os seus abismos…
∑ Não podemos mentir aos amigos. Entre amigos não deve haver lugar sequer para mentiras piedosas.
∑ Só se alcança a sabedoria reconhecendo a ignorância.
∑ Qunado uma mulher ri, um homem pode esperar dela alguma misericórdia.
∑ … parece que foi sempre assim desde que Deus criou o mundo, ou desde que o mundo se criou a si próprio, e depois os homens criaram Deus, e que assim há-de ser até ao fim dos tempos.
∑ Há dois tipos de cansaço: o dos vencedores e o dos vencidos.
∑ Um civil pode militarizar-se; um militar é incivilizável.
∑ Na estrada da vida, passado é contramão.
∑ Talvez chore se abrir os olhos, e não consiga mais impedir a torrente de lágrimas, e assim se transforme em rio, e deságue no mar.
∑ A tua pele tem um cheiro estranho. Cheira a sonhos.
∑ Há batalhas que não adianta ganhar e outras que vale a pena perder.
∑ vento não quebra os ramos que sabem se curvar.
∑ Certos erros podem ser mais belos do que a vida.
∑ La vida es muy bonita pero al fin siempre se acaba.
∑ Não há finais felizes, mas há finais que anunciam tempos melhores.

José Eduardo Agualusa, in O Ano em que Zumbi tomou o rio

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