quarta-feira, maio 26, 2004

Contos do nascer da terra

… mutilado de Guerra e incapacitado de paz.
A cozinha é onde se fabrica a casa inteira.
É que o tempo namora com ele próprio. Só finge que gosta de nós.
Eu nasci na arrecadação da paisagem, num lugar bem desmapeado do mundo.
Como se esse nó de forca fosse o meu cordão desumbilical.
Que o amor é como o mar: sendo infinito espera ainda em outra água se completar.
Os que beijam são sempre príncipes. No beijo todas são belas e adormecidas.
Na vida tudo chega de súbito. O resto, o que desperta tranquilo, é aquilo que, sem darmos conta, já tinha acontecido.
Domingo não é dia. É uma ausência de dia.
Você tem doença da água: mesmo da nuvem sempre regressa.
A morte gosta muito de ouvir cantar. Se distrai de mim e dança.
Velhos são aqueles que não visitam as suas próprias idades.
De improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso.
Nessa altura eu receava o amor. Não sei se temia a palavra ou o sentimento. Se o sentimento me parecia insuficiente, a palavra soava a demasiado.
Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a a certeza que morro de uma só única vez.
Me deram o caso para que lhe desvendasse os acasos.
Demorei em coisas nenhumas.
A punição do sonho é aquela que mais dói.
Em sua maior parte, o matrimónio é um maltrimónio. Os dois pensando somar, afinal, se traem e subtraem.
O que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente da nuvem.
O cansaço é um modo do corpo ensinar a cabeça.
Há mulheres que buscam um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba se unindo a alguém que lhes tira o mundo.
A vida é um por enquanto no que há-de vir.
… a água corre com saudade do que nunca teve: o total, imenso mar.
… suas vestes eram a sujidade. Havia quase nenhuma roupa em seu sarro.
… o vagabundo se ergueu e apressou umas passadas para alcançar o longe. Se entrecruzou com a sua sombra, assustado de haver escuro e luz.
… os homens se comportam, neste mundo, como estrangeiros. A machice é arrogância dos que têm medo, mais excluídos que emigrantes. Só as mulheres são indígenas da vida.
Tal pai, fatal filho.
A tristeza é uma janela que se abre nas traseiras do mundo.
Estrangeiro é o lugar onde não se espera ninguém.
- homem não deve mexer em sangue. Só a mulher.
- e porquê?
- em vocês, homens, o sangue anda sempre junto com a morte.
- você fala coisa que não sabe.
- a mulher é que pega no sangue e faz nascer uma outra vida.
Sempre onde chego é um lugar. Mas abrigo maior não encontrei senão nas paragens da memória.
Verdade é como ninho de cobra: se confirma apanhando não o ovo, mas a fatal picada.
A gente nasce grão. Morre terra.
Deus é bonito de lhe não vermos, Padre. Mesmo eu estou negar de ir para o céu para não sofrer desilusão.
Entendo só de raízes, vésperas de flores.
Formigas transportam infinitamente a terra. Estarão mudando eternamente de planeta? Estarão engolindo o mundo?
Sei só escrever palavras que não há.
… a lua morre e é grande enquanto as estrelas, ainda que pequeninas, ficam a brilhar.
Nem tudo se explica, para que se compreenda melhor.
Quando não se podem tomar decisões só se tomam decisões erradas.
Quando o pão é magro quem escasseia é o homem.

Mia Couto, Contos do nascer da terra

quinta-feira, maio 20, 2004

Avassaladoras

Para quem gosta de comédias românticas, Avassaladoras é uma boa proposta do cinema brasileiro. Este filme relata as histórias de quatro amigas em busca do amor e das suas tentativas frustradas de o encontrar. Entre a que parece não ter qualquer atractivo para os homens e que decide mesmo recorrer a uma agência de encontros, a que conhece vários homens mas é sempre deixada ou enganada, a que vai ficando com o mesmo namorado que não ama até aparecer o amor e a que tem uma vida profissional tão activa que nem tempo para encontros tem, esta história é uma excelente alternativa ao mesmo género de filmes de origem americana. Por não seguir à risca a mesma estrutura e nos apresentar várias hipóteses de histórias, não deixa de nos dar finais felizes mesmo que não cor-de-rosa. Permite ainda ver o trabalho de actores a que nos habituamos a ver somente nas novelas num outro registo. É um filme leve e divertido recomendado para uma sexta-feira à noite.

Mudar é preciso

Mudar é preciso. Não podemos ficar sempre na mesma, por isso resolvi mudar o blog. Espero que gostem do novo aspecto. Ainda há uns pormenores para afinar e melhorar, mas hei-de lá chegar. Entretanto, se tiverem sugestões, já sabem. Estou aqui para as ler.

Vertigem Azul

Revi recentemente o filme que mais marcou a minha adolescência: Vertigem Azul. O filme que me mostrou que o cinema se faz de imagens poderosas e não de falas históricas, que me mostrou como se pode fazer poesia com imagens, e como se podem mostrar sentimentos apenas com olhar.
Vertigem Azul ficou marcado na minha adolescência como o filme da minha vida. Agora, passados mais de dez anos vi um outro filme. É curioso o que o tempo faz.
O filme gira em torno de Jacques Maiol, um homem invulgar e enigmático como o mar.
Com uma existência real, Maiol foi na década de 60 recordista mundial de mergulho livre, estabelecendo um recorde de profundidade de 340m, que só viria a ser quebrado pelo próprio na década de 80, quando contava já com 57 anos de idade. Luc Besson pegou nesta figura fora do vulgar, que é conhecido no seu meio como o Homem-Golfinho, devido à sua capacidade de adaptação ao ambiente aquático, e deu-lhe uma aura, mais do que mística, diria mítica.
Enquanto personagem, Maiol é um ser desajustado com o ambiente humano que o rodeia. O único ambiente em que se completa e se sente feliz é no mar, junto dos golfinhos, que considera a sua única família. Incapaz de compreender os desígnios dos homens e do amor, deixa-se seduzir pelo canto das sereias que se escondem algures no mar.
O filme que vi há mais de 10 anos, contou-me esta história de sedução pelo mar, irresistível no seu feitiço e abraço envolvente. Agora descobri um pouco mais de percurso de Maiol pelo mundo humano. Não só porque agora o filme foi visto com outra experiência, como os cerca de 30 minutos extra da versão de realizador acrescentam outros pormenores.
Seja como for, foi um filme que me marcou, mais não seja porque me deu a conhecer Luc Besson e dois extraordinários actores: Jean Marc Barr e Jean Reno. Vejam.

quinta-feira, maio 13, 2004

Fica Comigo Esta Noite, Inês Pedrosa

“E tive-te, atrás do espelho, todas as manhãs.”
“A mesma, com a luz das rugas que me faltavam no tempo…”
“Não acreditavas em nada, vivias num aquário de sonhos impossíveis que faziam de ti um anjo negro, abismo de lágrimas congeladas. ”
“… e foi esse que o meu corpo ensinou aos outros homens, aos vários em que tentou enganar a tua ausência, ao único que soube contornar a tua ausência para permanecer em mim. ”
“Os olhos da mulher de um homem que nos ama são indiscretos. ”
“… parece-me que a ausência de memória é a grande quaestio do nosso tempo. ”
“E depois vamos os dois ter saudades da vida que não partilhámos. ”
“É uma questão de sorte, e a sorte não diz muito da pessoa. Não lhe pertence. ”
“Acreditamos naquilo que precisamos, não é? ”
“Mas as regras do jogo de Deus são outras, …: temos apenas a liberdade das nossas escolhas, os anjos observam, anotam os pontos que as pequenas peças cá em baixo vão somando, suspirarão talvez diante da absoluta previsibilidade da violência, do infinito tédio da violência, e é tudo. ”
“Há muitas maneiras de escolher o mesmo destino. ”
“Ainda não havia estrelas esquecidas pelo céu…”
“Agora posso escrever-te, porque te escrevo para mim. ”
“Só nos livros o amor racha corações em relâmpago. ”
“… eternidade, que é o sitio onde todas as recordações desapareceram. ”
“Deixei de ter caves e sótãos dentro de mim, corredores escuros onde o vento do medo uivava. ”
“O bom advogado é o mais eficaz na defesa da injustiça. ”
“Todo o amor é uma prisão, minha querida, uma prisão inventada por nós contra a escancarada brutalidade da vida. ”
“A beleza está é no coração de quem a sente…”
“Os homens são todos faro, como as mulheres faróis. ”
“O esplendor da Europa fez-se da teimosia de dobrar o mundo até o fazer coincidir com os sonhos. ”
“… a ilusão do domínio, a maior e a mais masculina das ilusões. ”
“Mas há sempre uma noite mais escura do que a escuridão do mundo…”
“A dor entra pelas pregas do tempo, molda-lhe o tecido, dá-lhe corpo.”

Amor, António Mega Ferreira

“… achava a utopia uma forma de vaidade pessoal,…”
“… o conhecimento do mundo devia servir-nos para compreender a razão das diferenças, …”
“… e as cores todas ficam em ti como tu ficas no mundo: exactamente.”
“… a indiferença vaga e casual com que um homem se refere a coisas passadas verdadeiramente importantes, …”
“às vezes, como náufragos, precisamos de nos agarrar a uma reminiscência banal, para evitarmos que tudo se dissolva na falsa enunciação da memória, na sua trágica encenação de efeitos sem correspondência com a realidade.”
“… morrer nem sequer é uma surpresa contingente, apenas uma circunstância: morremos aos poucos, pouco a pouco,…”
“… todo o amor é um acto de identificação e reconhecimento. Encontramos na pessoa amada, não um reflexo, o que seria pobre, mas uma ressonância da nossa própria alma.”
“E ter todo o tempo do mundo é que é amar.”
“Alguma coisa eu queria ter escrito aqui, abri a entrada, deixei-a assim dias a fio. O que se perdeu? O que ficou por dizer? A percepção desta ausência, a sensação de que algo desapareceu sem deixar rasto, dá-me a medida de tudo o que ficará por escrever, das coisas e dos dias, e das pessoas, e das ideias, e isso é uma dor e uma desolação. Era Inverno, devia estar frio, talvez chovesse. E é tudo.”
“… uma mulher atormentada pela sua própria incapacidade de gerar o drama que julgava ser necessário para alimentar a escrita?”
“… cheia unicamente de coisas singulares, destinadas apenas a serem conhecidas por um único ser e certamente inexplicáveis.”
“… entre o passado e o futuro, que é apenas a outra metade do que nunca há-de acontecer.”
“… porque se convencera que era preciso viver uma vida para poder escrevê-la. O seu romance, esse sim, é que talvez desse uma vida.”